Textos Zombies*

07:31

Pouca Fé
Notáveis incursões ao profundo mar azul, incursões não menos notáveis para lá do azul do céu. Tão grandioso o feito como o medo, aterrador, do passo seguinte.

É na fraternidade. Os conceitos, excepcionais, de altruísmo ou solidariedade gozam de uma reputação  elevada, muito útil de lá para cá, um transtorno de cá para lá. Como na maioria das vezes a viagem se faz já admirando o caminho de regresso, os conceitos, prostrados, são belos como só o são, mas teóricos. Não fosse uma ou outra pedra, mais inconveniente menos inconveniente, seríamos todos maratonistas uns dos outros. Mas que na natureza humana obter vantagem é maior imperativo que obter confissão ratificada de livre pecad. A fome, o sono e este impecilho maldito do desejo de ser amado são juntos maior motor que todos os princípios do mundo.

É quase uma doença o transtorno de se aborrecer com a decepção.


Juro
A recordação tem sempre também algo de imaginação. A memória, sendo feminina, por característica da Humanidade, que não traz culpa de género, se tem neutra, infiel.
Assim, que não me lembro da côr do carro que me atropelou (um pé, na passadeira, há já muitoooo tempo e muito ao de leve. A sério, estou óptima!), consigo vê-lo cinzento, imaginar o semáforo dos peões avariado e intermitente, sei pormenores menos importantes que animam o cenário da minha recordação, por definição, incompleta.

A palavra do Homem, sem culpa de género, neutra, é só a forma expressa da verdade conjurada num castelo de cartas, jogo do sério, desconhecimento profundo e involuntário, conduzido pela natureza física e química do que é somente possível.


4Ever Young
A juventude, que é apenas tão inocente quanto baste, é como um atestado de incompetência, que advém da óbvia inexperiência das mãos com com falta de calos. Parece que só quem a atravessou, a juventude, sabe que já lá não pode voltar. Um mar não mais navegável. Não se vê a outra margem. De um certo modo a inveja, que mais ou menos se admite (daqueles raros segredos que permanecem segredos) comanda o entusiasmo do ensinamento de onde subjaz que ensinar é reviver, é a oportunidade de voltar ao ponto de onde se pode ver o horizonte em que a vida é, de facto, uma tela, quase, quase, e aqui, mesmo só quase, em branco.

A velhice não é a porta das oportunidades que se fecha com uma rajada de vento, muito ou pouco violenta. Uma fusão, é uma infusão. Nem frio nem quente, eternamente morno, o velho quando começa a ser velho para nunca mais acabar. Infundem-se no espírito ao de leve e lenta, muito lentamente, primeiro a dúvida, a povoar o mundo que não abala, depois o remorso, as rugas, e, finalmente, uma ou outra crueldade.


Alma
De todas as maneiras de ser que possam existir, e não tenho a relação de quais ou quantas, encaixo-me numa. Tenho alma de artista. Como assim alma de artista? O que é ser artista? Nunca estudei história de arte, ou sequer estética. Arte, seja qual for, é, na minha verdade não universal, a transposição de sentimentos em obras orientadas à beleza e contemplação (pois que nunca vi um músico tocar para uma plateia de surdos!). A arte não obedece a muito mais que à emoção. Já viram um músico num palco, de olhos cerrados a balançar a cabeça ao ritmo das notas sincronizadas que partilha ao deslizar os dedos pelo piano? Ele está a sentir e a desejar que nós também, ele não aguenta o peito confinado a si próprio. Os artistas são, então, pessoas que sentem muito intensamente. Esta é a alma de artista que se acha na fotografia, no bailado, na pintura, na escultura, na música ou no teatro.

Há um valente par de anos, visitei uma galeria de arte que tinha em cartaz uma exposição conceituada, vi lá desenhos muito bonitos realmente. E vi uma parede de pé direito alto decorada com um só quadro pendurado, o quadro era uma tela gigante (como a Boa) toda preenchida de preto com um traço branco a meio, não fosse a insípida obra de arte suficiente para me espantar, vi uma meia dúzia de pessoas sentadas no chão da galeria a contemplar o quadro negro com um traço branco a meio. Sentiam profundamente a mensagem. Para mim, esse albarroamento da alma que me levaria a sentar no chão é o deslumbramento pelas palavras, é assim que eu até concebo sentir para lá da compreensão.

Mas é a literatura. É a magnifíca rede de significados que se encontra em palavras orientadas de uma certa, não tão clara e ambígua maneira. É na literatura que está o meu êxtase.  Sai-me disparado directo da alma, sem piscar os olhos e sem cerrar os punhos. É este o espanto que encontro no modo de descrever os sentimentos soterrados, pós-calamidade, em acontecimentos e disfarçados por palavras, qual Carnaval em vida.
 Assim, a literatura, como toda a arte, é um código cuja chave para decifrar está na alma de quem sente o mesmo.




* Coisas meias mortas que já escrevi aqui há uns tempos.

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